A Missa sobre o Mundo é um dos textos mais belos e poéticos de Pierre Teilhard. Espero que gostem... Podem imprimir a vontade, pois vale a pena.
A
MISSA SOBRE O MUNDO
OFERTÓRIO
Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas estepes
da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos
até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o
altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo.
O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente. Mais
uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra desperta,
freme, e recomeça seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu
Deus, a messe esperada desse novo esforço. Derramarei no meu cálice a seiva de
todos os frutos que hoje serão esmagados.
Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta a
todas as forças que, em um instante, vão elevar-se de todos os pontos do Globo
e convergir para o Espírito. - Que venham pois, a mim, a lembrança e a mística
presença daqueles que a luz desperta para uma nova jornada!
Um a um, Senhor, eu os vejo e os amo, aqueles que me destes como sustento e
como encanto natural de minha existência. Um a um, também, eu os conto, os
membros dessa outra e tão cara família que pouco a pouco as afinidades do
coração, da pesquisa científica e do pensamento juntaram à minha volta, a
partir dos elementos mais diversos. Mais confusamente, mas todos sem exceção,
eu os evoco, aqueles cuja tropa anônima forma a massa inumerável dos vivos:
aqueles que me rodeiam e me sustentam sem que eu os conheça; aqueles que vêm e
aqueles que vão; sobretudo aqueles que, na Verdade ou através do Erro, no seu
escritório, laboratório ou fábrica, crêem no progresso das Coisas e, hoje,
perseguirão apaixonadamente a luz.
Quero que nesse momento meu ser ressoe ao murmúrio profundo dessa multidão
agitada, confusa ou distinta, cuja imensidade nos espanta, - desse oceano
humano cujas lentas e monótonas oscilações lançam a inquietação nos corações
mais crentes. Tudo aquilo que vai aumentar no Mundo, ao longo deste dia, tudo
aquilo que vai diminuir, - tudo aquilo que vai morrer, também, - eis, Senhor, o
que me esforço por reunir em mim para vos oferecer; eis a matéria de meu
sacrifício, o único que vós podeis desejar.
Outrora, carregava-se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor
dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes
misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar
vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo devir
universal.
Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação, movida por vossa atração, vos
apresenta à nova aurora. Este pão, nosso esforço, não é em si, eu o sei, mais
que uma degradação imensa. Este vinho, nossa dor, não é ainda, ai de mim, mais
que uma dissolvente poção. Mas, no fundo dessa massa informe, colocastes –
disso estou certo, porque o sinto – um irresistível e santificante desejo que
nos faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel: “Senhor, fazei-nos Um!
Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime pureza de vossos santos,
deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível por tudo quanto se move na
matéria obscura, - porque irremediavelmente, reconheço em mim, bem mais que um
filho do Céu, um filho da Terra, - subirei, esta manhã, em pensamento, às
alturas, carregado das esperanças e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá, por
força de um sacerdócio que somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo aquilo
que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se
levanta, eu chamarei o Fogo.
O FOGO NO MUNDO
Aconteceu. O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.
Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o Mestre
as portas para entrar em sua casa?
Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro. Desde o coração do
menor átomo à energia das leis mais universais, ela tão naturalmente invadiu,
individual e conjuntamente, cada elemento, cada mola, cada liame de nosso
Cosmos que ele, poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente.
Na Humanidade nova que hoje se engendra, O Verbo prolongou o ato sem fim de seu
nascimento; e, por virtude de sua imersão no seio do Mundo, as grandes águas da
Matéria, sem um arrepio, carregaram-se de vida. Nada estremeceu, aparentemente,
sob a inefável transformação. E, entretanto, misteriosa e realmente, ao contato
da substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, se fez Carne. Meu Deus, toda
matéria é doravante encarnada, pela vossa Encarnação.
Há tempo que nossos pensamentos e nossas experiências humanas reconheceram as
estranhas propriedades do Universo que o fazem tão semelhante a uma Carne...
Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas dobras
e na profundidade de seus olhos.
Como a carne, ele se decompõe e nos escapa sob o trabalho de nossas análises,
de nossas quedas e de sua própria duração.
Como a Carne, ele não se abraça verdadeiramente senão no esforço sem fim para
atingí-lo sempre mais além daquilo que nos é dado.
Senhor, todos nós sentimos, ao nascer, essa mistura inquietante de proximidade
e distância. E, não há, na herança de dor e de esperança que transmitem as
idades, não há nostalgia mais desolada que aquela que faz o homem chorar de
irritação e de desejo no seio da Presença que paira, implacável e anônima, em
todas as coisas, à sua volta: "Que definitivamente os homens A
alcancem..."
Agora, Senhor, pela Consagração do Mundo, o clarão e o perfume flutuando no
Universo, tomam, em Vós, corpo e feição para mim. Aquilo que meu pensamento
hesitante entrevia, aquilo que meu coração reclamava por um desejo
inverossímil, Vós mo concedeis magnificamente: que as criaturas não sejam
somente solidárias entre si, a ponto de nenhuma poder existir sem que todas as
outras a rodeiem, - mas que sejam de talmaneira sustentadas pelo mesmo centro
real, que uma verdadeira Vida, expeimentada em comum, lhes dê definitivamente
sua consistência e sua união.
Fazei explodir, meu Deus, pela audácia de vossa Revelação, a timidez de um
pensamento pueril que nada ousa conceber de mais vasto, nem de mais vivo no mundo,
que a miserável perfeição de nosso organismo humano! Na via de uma compreensão
mais ousada do Universo, os filhos do século ultrapassam, a cada dia, os
mestres de Isarel. Vós, Senhor, Jesus, "em que todas as coisas encontram
sua consistência", revelai-Vos enfim àqueles que vos amam, como a Alma
superior e o Foco físico da Criação. Trata-se de nossa vida, não vedes? Se eu
não pudesse acreditar que vossa Presença real anima, enleva, aquece a menor das
energias que me penetram ou que me roçam, não morrria de frio, enregelado no
âmago de meu ser?
Obrigado, meu Deus, por terdes, de mim maneiras, conduzido meu olhar até
fazê-lo descobrir a imensa simplicidade das Coisas! Pouco a pouco, sob o
desenvolvimento irresistível das aspirações que depositastes em mim quando eu
era ainda uma criança, sob a influência de amigos excepcionais que surgirm na
altura exata ao longo de meu caminho para esclarecer e fortalecer o meu
espírito, sob o despertar de iniciaões terríveis e doces cujos círculos me
fizestes sucessivamente transpor, chego a nada mais poder ver nem respirar fora
do Meio onde tudo não é mais que Um.
Neste momento em que Vossa vida acaba de passar com um acréscimo de vigor no
Sacramento do Mundo, experimentarei, com uma consciência maior, a forte e calma
embriaguez de uma visão cuja coerência e harmonia não chego a esgotar.
O FOGO ACIMA DO MUNDO
Iludimo-nos tenazmente a respeito do Fogo, esse princípio do Ser, julgando que
ele sai das profundezas da Terra e que sua chama se alumia progressivamente ao
longo da brilhante esteira da Vida. Senhor, destes-me a graça de compreender
que esta visão era falsa e que, para Vos perceber, eu deveria mudá-la
completamente. No princípio, havia o poder inteligente, amante e ativo. No
princípio, era o Verbo sobernamente capaz de sujeitar a si e modelar toda a
Matéria que nascesse. No princípio, não havia o frio e as trevas, mas o Fogo.
Eis a Verdade.
Assim, pois, bem antes que de nossa noite jorre gradualmente a luz, é a luz
pré-existente que, paciente e infalivelmente, elimina nossas sombras.
Criaturas, somos por nós mesmos, Sombra e Vazio.
Vós sois, meu Deus, o próprio fundo e a estabilidade do Meio eterno, sem
duração nem espaço, em que gradualmente, nosso Universo emerge e se consuma,
perdendo os limites pelos quais nos parece tão grande. Tudo é ser, não há senão
ser em tudo, fora da gragmentação das criaturas e da oposição de seus átomos.
Espírito ardente, Fogo fundamental e pessoal. Termo real de uma união mil vezes
mais bela e desejável que a fusão destruidora imaginada por qualquer panteísmo,
dignai-vos, esta vez ainda, descer sobre a frágil película de matéria nova, com
a qual o mundo vai se envolver hoje, para lhe dar uma alma.
Eu sei. Não poderíamos ditar, nem mesmo antecipar o menor de vossos gestos. De
Vós, todas as iniciativas, a começar por esta de minha oração.
Verbo bilhante, Poder ardente, Vós que modelais o Múltiplo para lhe insuflar
vossa vida, baixai, eu Vos peço, sobre nós, vossas mãos poderosas, vossas mãos
previdentes, vossas mãos onipresentes, essas mãos que não tocam nem aqui nem
ali (como faria uma mão humana), mas que misturadas à profundeza e à
universalidade presente e passada das Coisas, nos atingem simultaneamente por
tudo quanto existe de mais vasto e de mais interior em nós e à nossa volta.
Com essas mãos invisíveis, preparai, por uma adaptação suprema, para a grande
obra que meditais, o esforço terrestre cuja totalidade, reunida em meu coração,
eu vos apresento agora. Remanejai, corrigi, refundi até às origens, ete
esforço, Vós que sabeis por que é impossível que a criatura não nasça senão
sustentada pela haste de uma interminável evolução.
E agora, pronunciai sobre ele, por minha boca, a dupla e eficaz palavra, sem a
qual tudo desmorona, tudo se desata, em nossa sabedoria e em nossa experiência,
- mas com a qual tudo se reúne e tudo se consolida, a perder de vista, em
nossas especulações e nossa prática do Universo. – Sobre toda a vida que vai
germinar, crescer, florescer e amadurecer neste dia, repeti: “Isto é o meu
Corpo”. – E, sobre toda a morte pronta a corroer, fanar e segar, ordenai (o
mistério de fé por excelência!): “Isto é o meu Sangue”.
O que experimento em face e no seio do Mundo assimilado por vossa Carne,
tornado vossa Carne, meu Deus - não é nem a absorção do monista ávido de se
fundir na unidade das coisas, - nem a emoção do pagão prostrado aos pés de uma
divindade tangével, - nem o abandono passivo do quietista agitado ao sabor das
energias místicas.
Tomando dessas diversas correntes algo de sua força, sem me levar a nenhum
empecilho, a atitude na qual fixo vossa universa Presença, é uma dmirável
síntese em que se unem, corrigindo-se, três das mais temíveis paixões que
sempre podm excitar um coração humano:
Como o monista, eu mergulho na Unidade total, - mas a Unidade que me recebe é
tão perfeita que nela sei encontrar, perdendo-me, o último aperfeiçoamento de
minha individualidade.
Como o pagão, adoro um Deus palpável. Eu até toco esse Deus, por toda a
superfície e profundidade do Mundo da Matéria em que me encontro. Mas para
alcançá-lo como eu quereria (simplemente para continuar a tocá-lo), é
necessário que eu vá sempre mais longe, através e para além de qualquer
empresa, - sem poder descansar em nada - levado a cada instante pelas criaturas
e a cada instnte ultrapassando-as, - num contínuo acolhimento e num contínuo
desapego.
Como o quietista, deixo-me deliciosamente embalar pela divina Fantasia. Mas, ao
mesmo tempo, sei que a Vontade divina só me será revelada, a cada instante, no
limite de meu esforço. Eu só tocarei Deus na matéria, como Jacó, quando tiver
sido vencido por Ele.
Assim, porque me apareceu o Objeto definitivo, total, conforme o qual está
afinada minha natureza, as potências de meu sr se põem espontaneamente a vibrar
segundo uma Nota Única, incivelmente rica, onde distingo, unidas sem esforço,
as tendências mais opostas: a exaltação de agir e a alegria de suportar; a
volúpia de reter e a febre de ultrapassar; o orgulho de crescer e a felicidade
de desaparecer em alguém maior que eu.
Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda
conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério
da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas
bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a
Matéria para atingir e receber a luz de Deus.
Fazei, Senhor, com que vossa descida sobre as Espécies universais seja para
mim, não somente querida e acariciada como o fruto de uma especulação
filosófica, mas que ela se torne verdadeirmente uma Presença real. Em potência
e em direito, queiramos ou não, estais encarnado no Mundo e vivemos suspensos a
Vós. Mas, de fato, falta (e quanto!) para todos nós, que Vós estejais
igualmente próximo. Levados, todos juntos, no seio de um mesmo Mundo, formamos,
não obstante, cada um, nosso pequeno Universo no qual a Encarnação se opera
independentemente, com uma intensidade e nuanças no altar, pedimos que, para
nós, a consagração se faça: "Para que se torne para nós o Corpo e o Sangue
de Jesus Cristo... ". Se creio firmemente que tudo, à minha volta, é o
Corpo e o Sangue do Verbo, então para mim (e, num certo sentido, só para mim)
se produz a maravilhosa 'Diafania' que faz transparecer objetivamente, na
profundidade de todo o fato e de todo elemento, o calor luminoso de uma mesma
Vida. Mas que minha fé, por desgraça, esmoreça logo a luz se extigue, tudo se
tona obscuro, tudo se decompõe.
No dia que começa, Senhor, acabaste de descer. Ai, que infinita diversidade nos
graus de vossa presença par os acontecimentos que se preparam e que todos
suportaremos! Nas mesmas circunstâncias exatmente, prontas a me envolver e a
envolver meus irmãos, podeis ser um pouco, muito, cada vez mais, ou nada.
Para que nenhum veneno me prejudique hoje, para que morte alguma me elimine,
para que nenhum vinho me embriague, para que em toda criatura eu Vos descubra e
Vos sinta - Senhor, fazei que eu creia!
COMUNHÃO
Se o Fogo desceu ao coração do Mundo é, finalmente, para me tomar e para me
absorver. A partir de então, não basta que eu o contemple e que por uma fé viva
intensifique sem cessar seu ardor à minha volta. É preciso que, depois de haver
cooperado, de todas as minhas forças, com a Consagração que o faz jorrar, eu
consinta enfim na comunhão que lhe dará em minha pessoa o alimento que ele veio
finalmente procurar.
Prosto-me, meu Deus, diante de vossa Presença no Universo em chamas e, sob os
traços de tudo aquilo que encontrarei, e de tudo que me acontecerá, e de tudo
que realizarei neste dia, desejo-Vos e Vos espero.
É terrível ter nascido, isto é, encontrar-se irrevogavelmente arrebatado, sem o
ter querido, numa torrente de energia formidável que parece querer destruir
tudo quanto arrasta consigo.
Quero, meu Deus, por uma inversão de forças das quais só Vós podeis ser o
autor, que o pavor que me domina diante das alterações sem nome, prontas a
renovar meu ser, vire uma alegria transbordante de ser transformado em Vós.
Sem hesitar, primeiro, estenderei a mão para o pão ardente que me apresentais.
Neste pão, onde encerrastes o germe de todo desenvolvimento, reconheço o
princípio e o segredo do futuro que me reservais. Tomá-lo é me entregar, eu o
sei, aos poderes que me arrancarão dolorosmente de mim mesmo para me atirar no
perigo, no trabalho, na renovação contínua das idéias, no desapego austero das
afeições. Comê-lo é adquirir, por aquilo que em todas as coisas está acima de
tudo, um gosto e uma afinidade que me tornarão doravante impossíveis as
alegrias em que se acalentava minha vida. Senhor Jesus, aceito ser possuído por
Vós, e conduzido pelo inexprimível poder de vosso Corpo ao qual estarei ligado,
em direção a soledades às quais, sozinho, jamais teria ousado subir.
Instintivamente, como todo Homem, gostaria de erguer aqui minha tenda sobre um
monte escolhido. Tenho medo, como todos os meus irmãos, do futuro
excessivamente misterioso e novo para o qual me impele a duração. E depois com
eles pergunto-me ansioso: aonde vai a vida?... Possa esta comunhão do pão com o
Cristo revestido dos poderes que dilatam o Mundo libertar-me de minha timidez e
de minha indiferença. Lanço-me, ó meu Deus, apoiado em vossa Palavra, no
turbilhão das lutas e das energias em que se desenvolverá meu poder de perceber
e expeimentar vossa Santa Presença. Aquele que amar apaixonadamente a Jesus
escondido nas forças que fazem crescer a Terra, a Terra maternalmente o elevará
em seus braços gigantes e o fará contemplar o semblante de Deus.
Se vosso reino, meu Deus, fosse deste Mundo, bastaria para Vos possuir, que eu
me confiasse aos poderes que nos fazem sofrer e morrer engrandecendo-nos
palpavelmente a nós ou àquilo que nos é mais caro em nós mesmos. Mas, posto que
o Termo em direção ao qual se move a Terra está para além não somente de cada
coisa individual, mas do conjunto das coisas - o trabalho do Mundo consiste não
em engendrar em si mesmo alguma Realidade suprema, mas em se consumir por união
num Ser pré-existente - conclui-se que, para chegar ao centro flamejante do
Universo, não basta ao Homem viver cada vez mais para si, nem mesmo dedicar sua
vida a uma causa terrestre por maior que ela seja. O Mundo só pode finalmente
se reunir a Vós, Senhor, por uma espécie de inversão, de retorno, de
excentração onde por um tempo, soçobra não somente o êxito dos indivíduos, mas
a própria aparência de todo proveito humano. Para que meu ser seja
decididamente anexado ao vosso, é preciso que morra em mim não somente a
mônada, mas o Mundo, isto é, que eu passe pela fase dilacerante de uma
diminuição que nada de tangível virá compensar. Eis por que, recolhendo no
cálice a amargura de todas as separações, de todas as limitações, de todas as
quedas estéreis, Vós mo ofereceis: "Bebei dele todos".
Como, Senhor, recusaria este Cálice, agora que pelo pão que me fizestes
saborear, introduziu-se no âmago de meu ser a inextinguível paixão de Vos
abraçar, para além da vida, através da morte? A Consagração do Mundo já
permaneceria inacabada se não tivésseis animado com predileção, para aqueles
que crêem, as forças que matam, depois das que vivificam. Minha Comunhão seria
então incompleta (simplesmente não seria cristã) se, com os acréscimos que este
novo dia me traz, eu não recebesse, em meu nome e em nome do Mundo, como a mais
direta participação em Vós mesmo, o trabalho, surdo ou manifesto, de
enfraquecimento, de velhice e de morte que mina incessantemente o Universo,
para sua salvação ou condenação. Abandono-me perdidamente, ó meu Deus, às
temíveis ações de dissolução pelas quais vossa divina Presença se substituirá
hoje, nisso quero crer totalmente, à minha estreita personalidade. Aquele que
tiver amado apaixonadamente a Jesus escondido nas forças que fazem morrer a
Terra, a Terra se desfazendo, o estreitará em seus braços gigantes e, com ela,
ele também despertará no seio de Deus.
ORAÇÃO
E agora, Jesus, que escondido sob os poderes do Mundo, Vos tornastes verdadeira
e fisicamente tudo para mim, tudo à minha volta, tudo em mim, farei passar numa
mesma aspiração a embriaguez daquilo que tenho e a sede daquilo que me falta, e
Vos repetirei, segundo vosso servidor, as palavras inflamadas em que se
reconhecerá sempre mais exatamente, nisso tenho fé inabalável, o Cristianismo
de amanhã:
"Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E,
quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me, até
a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação de mim
mesmo."
"Senhor". Ah sim, finalmente! pelo duplo mistério da Consagração e da
Comunhão universais, encontrei assim alguém a quem possa, de todo o coração,
dar este nome: Senhor! Enquanto eu não soube ou não ousei ver em Vós, Jesus,
mais que o Homem de há dois mil ano, o Moralista sublime, o Amigo, o Irmão, meu
amor permaneceu tímido e constrangido. Amigos, irmãos, sábios, não os temos nós
tão grandes e tão requintados e mais próximos, à nossa volta? E depois, pode o
Homem se dar plenamente a uma natureza estritamente humana? Desde sempre, o
Mundo, acima de todo elemento do Mundo, havia tomado meu coração, e eu nunca me
curvara sinceramente diante de mais ninguém. Então, durante muito tempo, mesmo
crendo, errei sem saber aquilo que amava. Mas hoje que, pela plena manifestação
dos poderes supra-humanos que a Ressurreição vos conferiu, transpareceis para
mim, Mestre, através de todos os poderes da Terra; hoje eu Vos reconheço como
meu Soberano e me entrego deliciosamente a Vós.
Estranhos caminhos os de vosso Espírito, meu Deus! - Quando, há dois séculos,
começou a se fazer sentir em vossa Igreja, a atração distinta de vosso Coração,
pôde parecer que o que seduzia as almas era a descoberta em Vós de um elemento
mais determinado, mais circunscrito que a vossa própria Humanidade. Ora, eis
que agora, súbita inversão: torna-se evidente que pela "revelação" de
vosso Coração, Vós quisestes, acima de tudo, Jesus, fornecer ao nosso amor o
meio de escapar do que era estreito demais, preciso demais, limitado demais na
imagem que fazíamos de Vós. No centro de vosso peito, não percebo senão uma
fornalha; e quanto mais fixo esta fornalha ardente, tanto mais me parece que à
volta os contornos de vosso Corpo se fundem, crescendo além de toda medida, até
não se distinguirem mais em Vós outros traços que os da figura de um Mundo
incendiado.
Cristo glorioso! Influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro
deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo;
Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes
a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em
fusão; Vos cujas mãos aprisionam as estrelas, Vós que sois o primeiro
e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade
todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por
Vós que meu ser chamava com um desejo tão vasto quanto o Universo: Vós sois
verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!
"Encerrai-me em Vós, Senhor." Ah! eu creio (e tanto que essa fé se
tornou um dos fundamentos de minha vida íntima): trevas absolutamente
exteriores a Vós seriam umpuro nada. Nada pode subsistir fora de vossa Carne,
Jesus; a tal ponto que mesmo aqueles que se encontram rejeitados fora de vosso
amor se beneficiam ainda, para sua infelicidade, do suporte de vossa presença.
Estamos todos irremediavelmente em Vós, Meio universal de consistência e de
vida! - Mas justamente porque não somos coisas definitivamente prontas que
possam ser concebidas indiferentemente como próximas ou afastadas de Vós;
justamente porque em nós o sujeito da união cresce com a própria união que nos
entrega progressivamente a Vós; - em nome daquilo que há de mais essencial em
meu ser, Senhor, escutai o desejo desta coisa que ouso chamar minha alma, ainda
que, a cada dia que passa, eu compreenda o quanto ela é maior do que eu; e para
estancar minha sede de existir - através das zonas sucessivas de vossa Substância
profunda - atraí-me até as dobras íntimas do Centro de vosso Coração.
Mais profundo sois encontrado, Mestre, mais vossa influência se descobre
universal. Sob este aspecto poderia apreciar, a cada instante, o quanto avancei
em Vós. Quando eu visse todas as coisas guardando à minha volta seu sabor num
único Elemento, infinitamente próximo e infinitamente distante, - quando,
aprisionado na intimidade ciumenta de um santuário divino, eu me sentisse
entretanto errar livremente pelo céu de todas as criaturas, então saberia estar
próximo do lugar central para onde converge o coração do Mundo na irradiação
descendente do Coração de Deus.
Nesse ponto de universal abrasamento, agi sobre mim, Senhor, pelo fogo reunido
de todas as ações interiores e exteriores que, provadas menos perto de Vós,
seriam neutras, equívocas ou hostis; mas que, animadas por uma Energia
"que tudo pode dominar", tornam-se, nas profundezas físicas de vosso
Coração, os anjos de vossa vitoriosa operação. Por uma combinação maravilhosa,
com vossa atração, exaltai - e depois desgostai - meu coração do encanto das
criaturas e da sua insuficiência, de sua doçura e de sua maldade, de sua
decepcionante fraqueza e de seu espantoso poder; ensinai-me a verdadeira
pureza, aquela que não é separação anemizante das coisas, mas um impulso
através de todas as belezas; revelai-me a verdadeira caridade, aquela que não é
o medo estéril de fazer o mal, mas a vontade vigorosa de forçar, todos juntos,
as portas da vida; dai-me, enfim, dai-me acima de tudo, por uma visão sempre
maior de vossa onipresença, a paixão bem-aventurada de descobrir, de fazer e de
suportar sempre um pouco mais o MUndo, a fim de penetrar sempre mais em Vós.
Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver,
meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o
Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim,
dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza,
eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de
vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia pregar senão o mistério
de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!
Ao vosso Corpo, em toda sua extensão, isto é, ao Mundo tornado por vosso poder
e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, -
por todos os recursos que fazem jorrar em mim a vossa atração criadora, por
minha ciência fraca demais, por meus laços religiosos, por meu sacerdócio e (no
que mais insisto) pelo fundo de minha convicção humana - para nele viver e
morrer, - eu me entrego, ó Jesus.
Ordos, 1923.
(Em Hino do Universo, 1923)