terça-feira, 15 de outubro de 2019

SOBRE A FELICIDADE


SOBRE A FELICIDADE
Os homens, segundo o jesuíta Teilhard de Chardin, dividem-se em três grupos que partem para escalar uma montanha…

“Alguns não estão irritados pela partida. O sol brilha, a vista é bela. Mas para que subir mais alto? Não é melhor aproveitar a montanha onde nos encontramos, em meio aos prados e no bosque? E se deitam sobre a grama, ou exploram ao redor, esperando a hora do piquenique. Os últimos, enfim, os verdadeiros alpinistas, não tiram os olhos dos picos que decidiram subir. E seguem adiante.

Os cansados, os brincalhões, os fervorosos. Três tipos de Homem, que cada um de nós traz em semente no profundo de si mesmo, e entre os quais, desde sempre, divide-se a humanidade que nos circunda.

Os cansados (os pessimistas)  para começar

Para esta categoria de homens, existir é um erro, ou um falimento. Somos mal comprometidos, e por consequência se trata de abandonar o jogo o mais rápido possível. Levado ao extremo e colocado em uma doutrina sábia, esta atitude resulta da sabedoria hindu, pela qual o Universo é uma ilusão e uma cadeia. Mas de modo mais amortecido e comum, a mesma disposição se encontra e se revela em um mar de julgamentos práticos que bem conheceis. ‘Que sentido tem buscar? Por que não deixam os selvagens seu mundo selvagem e os ignorantes a ignorância? O que quer dizer a Ciência? Não se está melhor deitado que em pé? Mortos, ao invés de mentir?’ Tudo isso significa, ao menos implicitamente, que é preferível ser menos que mais; melhor ainda, não ser absoluto.

Os brincalhões (os foliões)

Para estes homens da segunda espécie, é melhor ser que não ser. Mas, estejamos atentos, “ser” tem um sentido todo particular. Ser, viver, para os discípulos desta escola, não é agir, mas curtir o presente. Curtir cada momento e casa coisa zelosamente, sem perder nada, e sobretudo sem se preocupar em mudar atitude: nisto consiste a sabedoria. Não se arrisca nada pelo futuro, a menos que para um excesso de refinamento. Não se envenena apreciando o risco pelo risco, para provar o prazer de ousar ou sentir a emoção do medo.

Assim é para nós, de uma forma simplificada, o antigo hedonismo pagão de Epicuro. E não muito tempo atrás, nos círculos literários, esta era a mesma tendência de Paul Morand, ou de um Montherrant, ou mais sutil, de um Gide, pelo qual o ideal da vida é beber sem nunca acabar com a própria sede. Não para retomar a forma, mas para estar pronto a curvar-se mais e rapidamente sobre qualquer nova fonte.

Os fervorosos

Aqui me refiro àqueles pelos quais a vida é uma subida e uma descoberta. Para os homens que formam esta terceira categoria não somente é melhor ser que não ser, mas é sempre a possibilidade - e é a única que interessa - de se tornar alguma coisa a mais. Para estes conquistadores apaixonados de aventura, o ser é inesgotável - não à maneira de Gide, como uma jóia de mil facetas, que se pode girar em todos os versos sem nunca se cansar, mas como um fogo de calor e de luz, ao qual é possível aproximar-se sempre mais. Pode-se importunar estes homens, tratá-los de ingênuos ou achá-los chatos. Mas depois de tudo são eles que nos fizeram e que preparam a Terra do Amanhã.

Pessimismo, e volta ao passado, curtição do presente, impulso para o futuro. Três atitudes fundamentais frente à Vida.

A partir disso, inevitavelmente, ao centro mesmo do nosso problema, eis três formas contrastantes de felicidade:

1) Felicidade de tranquilidade. Nenhum tédio, nenhum risco, nenhum esforço diminui os contatos, limitamos na necessidade, reentramos na nossa concha. O homem feliz é aquele que pensará, sentirá e desejará menos.

2) Felicidade de prazer, prazer imóvel, ou mais ainda, prazer continuamente renovado. O propósito da vida não é agir e criar, mas aproveitar. Ainda menos esforço, portanto, ou aquele tanto necessário para tomar a taça de licor. Relaxar o máximo possível, como a folha no raio de sol, mudar de posição a cada instante para sentir mais: eis a receita da felicidade. O homem feliz é aquele que sabe sentir o instante que tem entre as mãos no mundo mais completo.

3) Felicidade de crescimento ou de desenvolvimento. Para este terceiro ponto de vista, a felicidade não existe nem tem valor por si mesma, não é outro que o sinal, o efeito e a recompensa da ação guiada. ‘Um subproduto do esforço’, dizia Aldous Huxley. Não basta, como sugere o moderno hedonismo, renovar-se em um modo qualquer para ser feliz. Nenhuma mudança santifica, torna feliz, ao menos que não se haja avançando e em saída.

O homem feliz é aquele que, sem buscar diretamente a felicidade, encontra inevitavelmente a alegria no ato de alcançar a plenitude e o ponto extremo de si mesmo, para adiante”.

A MISSA SOBRE O MUNDO

A Missa sobre o Mundo é um dos textos mais belos e poéticos de Pierre Teilhard. Espero que gostem... Podem imprimir a vontade, pois vale a pena.
A MISSA SOBRE O MUNDO

OFERTÓRIO

Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo.

O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente. Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra desperta, freme, e recomeça seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu Deus, a messe esperada desse novo esforço. Derramarei no meu cálice a seiva de todos os frutos que hoje serão esmagados.

Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, em um instante, vão elevar-­se de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito. - Que venham pois, a mim, a lembrança e a mística presença daqueles que a luz desperta para uma nova jornada!

Um a um, Senhor, eu os vejo e os amo, aqueles que me destes como sustento e como encanto natural de minha existência. Um a um, também, eu os conto, os membros dessa outra e tão cara família que pouco a pouco as afinidades do coração, da pesquisa científica e do pensamento juntaram à minha volta, a partir dos elementos mais diversos. Mais confusamente, mas todos sem exceção, eu os evoco, aqueles cuja tropa anônima forma a massa inumerável dos vivos: aqueles que me rodeiam e me sustentam sem que eu os conheça; aqueles que vêm e aqueles que vão; sobretudo aqueles que, na Verdade ou através do Erro, no seu escritório, laboratório ou fábrica, crêem no progresso das Coisas e, hoje, perseguirão apaixonadamente a luz.

Quero que nesse momento meu ser ressoe ao murmúrio profundo dessa multidão agitada, confusa ou distinta, cuja imensidade nos espanta, - desse oceano humano cujas lentas e monótonas oscilações lançam a inquietação nos corações mais crentes. Tudo aquilo que vai aumentar no Mundo, ao longo deste dia, tudo aquilo que vai diminuir, - tudo aquilo que vai morrer, também, - eis, Senhor, o que me esforço por reunir em mim para vos oferecer; eis a matéria de meu sacrifício, o único que vós podeis desejar.

Outrora, carregava-­se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo devir universal.

Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação, movida por vossa atração, vos apresenta à nova aurora. Este pão, nosso esforço, não é em si, eu o sei, mais que uma degradação imensa. Este vinho, nossa dor, não é ainda, ai de mim, mais que uma dissolvente poção. Mas, no fundo dessa massa informe, colocastes – disso estou certo, porque o sinto – um irresistível e santificante desejo que nos faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel: “Senhor, fazei-nos Um!

Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime pureza de vossos santos, deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível por tudo quanto se move na matéria obscura, - porque irremediavelmente, reconheço em mim, bem mais que um filho do Céu, um filho da Terra, - subirei, esta manhã, em pensamento, às alturas, carregado das esperanças e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá, por força de um sacerdócio que somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se levanta, eu chamarei o Fogo.

O FOGO NO MUNDO

Aconteceu. O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.
Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o Mestre as portas para entrar em sua casa?

Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro. Desde o coração do menor átomo à energia das leis mais universais, ela tão naturalmente invadiu, individual e conjuntamente, cada elemento, cada mola, cada liame de nosso Cosmos que ele, poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente.

Na Humanidade nova que hoje se engendra, O Verbo prolongou o ato sem fim de seu nascimento; e, por virtude de sua imersão no seio do Mundo, as grandes águas da Matéria, sem um arrepio, carregaram-se de vida. Nada estremeceu, aparentemente, sob a inefável transformação. E, entretanto, misteriosa e realmente, ao contato da substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, se fez Carne. Meu Deus, toda matéria é doravante encarnada, pela vossa Encarnação.

Há tempo que nossos pensamentos e nossas experiências humanas reconheceram as estranhas propriedades do Universo que o fazem tão semelhante a uma Carne...

Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas dobras e na profundidade de seus olhos.

Como a carne, ele se decompõe e nos escapa sob o trabalho de nossas análises, de nossas quedas e de sua própria duração.

Como a Carne, ele não se abraça verdadeiramente senão no esforço sem fim para atingí-lo sempre mais além daquilo que nos é dado.

Senhor, todos nós sentimos, ao nascer, essa mistura inquietante de proximidade e distância. E, não há, na herança de dor e de esperança que transmitem as idades, não há nostalgia mais desolada que aquela que faz o homem chorar de irritação e de desejo no seio da Presença que paira, implacável e anônima, em todas as coisas, à sua volta: "Que definitivamente os homens A alcancem..."

Agora, Senhor, pela Consagração do Mundo, o clarão e o perfume flutuando no Universo, tomam, em Vós, corpo e feição para mim. Aquilo que meu pensamento hesitante entrevia, aquilo que meu coração reclamava por um desejo inverossímil, Vós mo concedeis magnificamente: que as criaturas não sejam somente solidárias entre si, a ponto de nenhuma poder existir sem que todas as outras a rodeiem, - mas que sejam de talmaneira sustentadas pelo mesmo centro real, que uma verdadeira Vida, expeimentada em comum, lhes dê definitivamente sua consistência e sua união.

Fazei explodir, meu Deus, pela audácia de vossa Revelação, a timidez de um pensamento pueril que nada ousa conceber de mais vasto, nem de mais vivo no mundo, que a miserável perfeição de nosso organismo humano! Na via de uma compreensão mais ousada do Universo, os filhos do século ultrapassam, a cada dia, os mestres de Isarel. Vós, Senhor, Jesus, "em que todas as coisas encontram sua consistência", revelai-Vos enfim àqueles que vos amam, como a Alma superior e o Foco físico da Criação. Trata-se de nossa vida, não vedes? Se eu não pudesse acreditar que vossa Presença real anima, enleva, aquece a menor das energias que me penetram ou que me roçam, não morrria de frio, enregelado no âmago de meu ser?

Obrigado, meu Deus, por terdes, de mim maneiras, conduzido meu olhar até fazê-lo descobrir a imensa simplicidade das Coisas! Pouco a pouco, sob o desenvolvimento irresistível das aspirações que depositastes em mim quando eu era ainda uma criança, sob a influência de amigos excepcionais que surgirm na altura exata ao longo de meu caminho para esclarecer e fortalecer o meu espírito, sob o despertar de iniciaões terríveis e doces cujos círculos me fizestes sucessivamente transpor, chego a nada mais poder ver nem respirar fora do Meio onde tudo não é mais que Um.

Neste momento em que Vossa vida acaba de passar com um acréscimo de vigor no Sacramento do Mundo, experimentarei, com uma consciência maior, a forte e calma embriaguez de uma visão cuja coerência e harmonia não chego a esgotar.

O FOGO ACIMA DO MUNDO

Iludimo-nos tenazmente a respeito do Fogo, esse princípio do Ser, julgando que ele sai das profundezas da Terra e que sua chama se alumia progressivamente ao longo da brilhante esteira da Vida. Senhor, destes-me a graça de compreender que esta visão era falsa e que, para Vos perceber, eu deveria mudá-la completamente. No princípio, havia o poder inteligente, amante e ativo. No princípio, era o Verbo sobernamente capaz de sujeitar a si e modelar toda a Matéria que nascesse. No princípio, não havia o frio e as trevas, mas o Fogo. Eis a Verdade.

Assim, pois, bem antes que de nossa noite jorre gradualmente a luz, é a luz pré-existente que, paciente e infalivelmente, elimina nossas sombras. Criaturas, somos por nós mesmos, Sombra e Vazio.
Vós sois, meu Deus, o próprio fundo e a estabilidade do Meio eterno, sem duração nem espaço, em que gradualmente, nosso Universo emerge e se consuma, perdendo os limites pelos quais nos parece tão grande. Tudo é ser, não há senão ser em tudo, fora da gragmentação das criaturas e da oposição de seus átomos.

Espírito ardente, Fogo fundamental e pessoal. Termo real de uma união mil vezes mais bela e desejável que a fusão destruidora imaginada por qualquer panteísmo, dignai-vos, esta vez ainda, descer sobre a frágil película de matéria nova, com a qual o mundo vai se envolver hoje, para lhe dar uma alma.

Eu sei. Não poderíamos ditar, nem mesmo antecipar o menor de vossos gestos. De Vós, todas as iniciativas, a começar por esta de minha oração.

Verbo bilhante, Poder ardente, Vós que modelais o Múltiplo para lhe insuflar vossa vida, baixai, eu Vos peço, sobre nós, vossas mãos poderosas, vossas mãos previdentes, vossas mãos onipresentes, essas mãos que não tocam nem aqui nem ali (como faria uma mão humana), mas que misturadas à profundeza e à universalidade presente e passada das Coisas, nos atingem simultaneamente por tudo quanto existe de mais vasto e de mais interior em nós e à nossa volta.

Com essas mãos invisíveis, preparai, por uma adaptação suprema, para a grande obra que meditais, o esforço terrestre cuja totalidade, reunida em meu coração, eu vos apresento agora. Remanejai, corrigi, refundi até às origens, ete esforço, Vós que sabeis por que é impossível que a criatura não nasça senão sustentada pela haste de uma interminável evolução.

E agora, pronunciai sobre ele, por minha boca, a dupla e eficaz palavra, sem a qual tudo desmorona, tudo se desata, em nossa sabedoria e em nossa experiência, - mas com a qual tudo se reúne e tudo se consolida, a perder de vista, em nossas especulações e nossa prática do Universo. – Sobre toda a vida que vai germinar, crescer, florescer e amadurecer neste dia, repeti: “Isto é o meu Corpo”. – E, sobre toda a morte pronta a corroer, fanar e segar, ordenai (o mistério de fé por excelência!): “Isto é o meu Sangue”.

O que experimento em face e no seio do Mundo assimilado por vossa Carne, tornado vossa Carne, meu Deus - não é nem a absorção do monista ávido de se fundir na unidade das coisas, - nem a emoção do pagão prostrado aos pés de uma divindade tangével, - nem o abandono passivo do quietista agitado ao sabor das energias místicas.

Tomando dessas diversas correntes algo de sua força, sem me levar a nenhum empecilho, a atitude na qual fixo vossa universa Presença, é uma dmirável síntese em que se unem, corrigindo-se, três das mais temíveis paixões que sempre podm excitar um coração humano:

Como o monista, eu mergulho na Unidade total, - mas a Unidade que me recebe é tão perfeita que nela sei encontrar, perdendo-me, o último aperfeiçoamento de minha individualidade.

Como o pagão, adoro um Deus palpável. Eu até toco esse Deus, por toda a superfície e profundidade do Mundo da Matéria em que me encontro. Mas para alcançá-lo como eu quereria (simplemente para continuar a tocá-lo), é necessário que eu vá sempre mais longe, através e para além de qualquer empresa, - sem poder descansar em nada - levado a cada instante pelas criaturas e a cada instnte ultrapassando-as, - num contínuo acolhimento e num contínuo desapego.

Como o quietista, deixo-me deliciosamente embalar pela divina Fantasia. Mas, ao mesmo tempo, sei que a Vontade divina só me será revelada, a cada instante, no limite de meu esforço. Eu só tocarei Deus na matéria, como Jacó, quando tiver sido vencido por Ele.

Assim, porque me apareceu o Objeto definitivo, total, conforme o qual está afinada minha natureza, as potências de meu sr se põem espontaneamente a vibrar segundo uma Nota Única, incivelmente rica, onde distingo, unidas sem esforço, as tendências mais opostas: a exaltação de agir e a alegria de suportar; a volúpia de reter e a febre de ultrapassar; o orgulho de crescer e a felicidade de desaparecer em alguém maior que eu.

Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a Matéria para atingir e receber a luz de Deus.

Fazei, Senhor, com que vossa descida sobre as Espécies universais seja para mim, não somente querida e acariciada como o fruto de uma especulação filosófica, mas que ela se torne verdadeirmente uma Presença real. Em potência e em direito, queiramos ou não, estais encarnado no Mundo e vivemos suspensos a Vós. Mas, de fato, falta (e quanto!) para todos nós, que Vós estejais igualmente próximo. Levados, todos juntos, no seio de um mesmo Mundo, formamos, não obstante, cada um, nosso pequeno Universo no qual a Encarnação se opera independentemente, com uma intensidade e nuanças no altar, pedimos que, para nós, a consagração se faça: "Para que se torne para nós o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo... ". Se creio firmemente que tudo, à minha volta, é o Corpo e o Sangue do Verbo, então para mim (e, num certo sentido, só para mim) se produz a maravilhosa 'Diafania' que faz transparecer objetivamente, na profundidade de todo o fato e de todo elemento, o calor luminoso de uma mesma Vida. Mas que minha fé, por desgraça, esmoreça logo a luz se extigue, tudo se tona obscuro, tudo se decompõe.

No dia que começa, Senhor, acabaste de descer. Ai, que infinita diversidade nos graus de vossa presença par os acontecimentos que se preparam e que todos suportaremos! Nas mesmas circunstâncias exatmente, prontas a me envolver e a envolver meus irmãos, podeis ser um pouco, muito, cada vez mais, ou nada.

Para que nenhum veneno me prejudique hoje, para que morte alguma me elimine, para que nenhum vinho me embriague, para que em toda criatura eu Vos descubra e Vos sinta - Senhor, fazei que eu creia!

COMUNHÃO

Se o Fogo desceu ao coração do Mundo é, finalmente, para me tomar e para me absorver. A partir de então, não basta que eu o contemple e que por uma fé viva intensifique sem cessar seu ardor à minha volta. É preciso que, depois de haver cooperado, de todas as minhas forças, com a Consagração que o faz jorrar, eu consinta enfim na comunhão que lhe dará em minha pessoa o alimento que ele veio finalmente procurar.

Prosto-me, meu Deus, diante de vossa Presença no Universo em chamas e, sob os traços de tudo aquilo que encontrarei, e de tudo que me acontecerá, e de tudo que realizarei neste dia, desejo-Vos e Vos espero.

É terrível ter nascido, isto é, encontrar-se irrevogavelmente arrebatado, sem o ter querido, numa torrente de energia formidável que parece querer destruir tudo quanto arrasta consigo.

Quero, meu Deus, por uma inversão de forças das quais só Vós podeis ser o autor, que o pavor que me domina diante das alterações sem nome, prontas a renovar meu ser, vire uma alegria transbordante de ser transformado em Vós.

Sem hesitar, primeiro, estenderei a mão para o pão ardente que me apresentais. Neste pão, onde encerrastes o germe de todo desenvolvimento, reconheço o princípio e o segredo do futuro que me reservais. Tomá-lo é me entregar, eu o sei, aos poderes que me arrancarão dolorosmente de mim mesmo para me atirar no perigo, no trabalho, na renovação contínua das idéias, no desapego austero das afeições. Comê-lo é adquirir, por aquilo que em todas as coisas está acima de tudo, um gosto e uma afinidade que me tornarão doravante impossíveis as alegrias em que se acalentava minha vida. Senhor Jesus, aceito ser possuído por Vós, e conduzido pelo inexprimível poder de vosso Corpo ao qual estarei ligado, em direção a soledades às quais, sozinho, jamais teria ousado subir. Instintivamente, como todo Homem, gostaria de erguer aqui minha tenda sobre um monte escolhido. Tenho medo, como todos os meus irmãos, do futuro excessivamente misterioso e novo para o qual me impele a duração. E depois com eles pergunto-me ansioso: aonde vai a vida?... Possa esta comunhão do pão com o Cristo revestido dos poderes que dilatam o Mundo libertar-me de minha timidez e de minha indiferença. Lanço-me, ó meu Deus, apoiado em vossa Palavra, no turbilhão das lutas e das energias em que se desenvolverá meu poder de perceber e expeimentar vossa Santa Presença. Aquele que amar apaixonadamente a Jesus escondido nas forças que fazem crescer a Terra, a Terra maternalmente o elevará em seus braços gigantes e o fará contemplar o semblante de Deus.

Se vosso reino, meu Deus, fosse deste Mundo, bastaria para Vos possuir, que eu me confiasse aos poderes que nos fazem sofrer e morrer engrandecendo-nos palpavelmente a nós ou àquilo que nos é mais caro em nós mesmos. Mas, posto que o Termo em direção ao qual se move a Terra está para além não somente de cada coisa individual, mas do conjunto das coisas - o trabalho do Mundo consiste não em engendrar em si mesmo alguma Realidade suprema, mas em se consumir por união num Ser pré-existente - conclui-se que, para chegar ao centro flamejante do Universo, não basta ao Homem viver cada vez mais para si, nem mesmo dedicar sua vida a uma causa terrestre por maior que ela seja. O Mundo só pode finalmente se reunir a Vós, Senhor, por uma espécie de inversão, de retorno, de excentração onde por um tempo, soçobra não somente o êxito dos indivíduos, mas a própria aparência de todo proveito humano. Para que meu ser seja decididamente anexado ao vosso, é preciso que morra em mim não somente a mônada, mas o Mundo, isto é, que eu passe pela fase dilacerante de uma diminuição que nada de tangível virá compensar. Eis por que, recolhendo no cálice a amargura de todas as separações, de todas as limitações, de todas as quedas estéreis, Vós mo ofereceis: "Bebei dele todos".

Como, Senhor, recusaria este Cálice, agora que pelo pão que me fizestes saborear, introduziu-se no âmago de meu ser a inextinguível paixão de Vos abraçar, para além da vida, através da morte? A Consagração do Mundo já permaneceria inacabada se não tivésseis animado com predileção, para aqueles que crêem, as forças que matam, depois das que vivificam. Minha Comunhão seria então incompleta (simplesmente não seria cristã) se, com os acréscimos que este novo dia me traz, eu não recebesse, em meu nome e em nome do Mundo, como a mais direta participação em Vós mesmo, o trabalho, surdo ou manifesto, de enfraquecimento, de velhice e de morte que mina incessantemente o Universo, para sua salvação ou condenação. Abandono-me perdidamente, ó meu Deus, às temíveis ações de dissolução pelas quais vossa divina Presença se substituirá hoje, nisso quero crer totalmente, à minha estreita personalidade. Aquele que tiver amado apaixonadamente a Jesus escondido nas forças que fazem morrer a Terra, a Terra se desfazendo, o estreitará em seus braços gigantes e, com ela, ele também despertará no seio de Deus.

ORAÇÃO

E agora, Jesus, que escondido sob os poderes do Mundo, Vos tornastes verdadeira e fisicamente tudo para mim, tudo à minha volta, tudo em mim, farei passar numa mesma aspiração a embriaguez daquilo que tenho e a sede daquilo que me falta, e Vos repetirei, segundo vosso servidor, as palavras inflamadas em que se reconhecerá sempre mais exatamente, nisso tenho fé inabalável, o Cristianismo de amanhã:

"Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E, quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me, até a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação de mim mesmo."

"Senhor". Ah sim, finalmente! pelo duplo mistério da Consagração e da Comunhão universais, encontrei assim alguém a quem possa, de todo o coração, dar este nome: Senhor! Enquanto eu não soube ou não ousei ver em Vós, Jesus, mais que o Homem de há dois mil ano, o Moralista sublime, o Amigo, o Irmão, meu amor permaneceu tímido e constrangido. Amigos, irmãos, sábios, não os temos nós tão grandes e tão requintados e mais próximos, à nossa volta? E depois, pode o Homem se dar plenamente a uma natureza estritamente humana? Desde sempre, o Mundo, acima de todo elemento do Mundo, havia tomado meu coração, e eu nunca me curvara sinceramente diante de mais ninguém. Então, durante muito tempo, mesmo crendo, errei sem saber aquilo que amava. Mas hoje que, pela plena manifestação dos poderes supra-humanos que a Ressurreição vos conferiu, transpareceis para mim, Mestre, através de todos os poderes da Terra; hoje eu Vos reconheço como meu Soberano e me entrego deliciosamente a Vós.

Estranhos caminhos os de vosso Espírito, meu Deus! - Quando, há dois séculos, começou a se fazer sentir em vossa Igreja, a atração distinta de vosso Coração, pôde parecer que o que seduzia as almas era a descoberta em Vós de um elemento mais determinado, mais circunscrito que a vossa própria Humanidade. Ora, eis que agora, súbita inversão: torna-se evidente que pela "revelação" de vosso Coração, Vós quisestes, acima de tudo, Jesus, fornecer ao nosso amor o meio de escapar do que era estreito demais, preciso demais, limitado demais na imagem que fazíamos de Vós. No centro de vosso peito, não percebo senão uma fornalha; e quanto mais fixo esta fornalha ardente, tanto mais me parece que à volta os contornos de vosso Corpo se fundem, crescendo além de toda medida, até não se distinguirem mais em Vós outros traços que os da figura de um Mundo incendiado.

Cristo glorioso! Influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo; Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em fusão; Vos cujas mãos aprisionam as estrelas, Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chamava com um desejo tão vasto quanto o Universo: Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!

"Encerrai-me em Vós, Senhor." Ah! eu creio (e tanto que essa fé se tornou um dos fundamentos de minha vida íntima): trevas absolutamente exteriores a Vós seriam umpuro nada. Nada pode subsistir fora de vossa Carne, Jesus; a tal ponto que mesmo aqueles que se encontram rejeitados fora de vosso amor se beneficiam ainda, para sua infelicidade, do suporte de vossa presença. Estamos todos irremediavelmente em Vós, Meio universal de consistência e de vida! - Mas justamente porque não somos coisas definitivamente prontas que possam ser concebidas indiferentemente como próximas ou afastadas de Vós; justamente porque em nós o sujeito da união cresce com a própria união que nos entrega progressivamente a Vós; - em nome daquilo que há de mais essencial em meu ser, Senhor, escutai o desejo desta coisa que ouso chamar minha alma, ainda que, a cada dia que passa, eu compreenda o quanto ela é maior do que eu; e para estancar minha sede de existir - através das zonas sucessivas de vossa Substância profunda - atraí-me até as dobras íntimas do Centro de vosso Coração.

Mais profundo sois encontrado, Mestre, mais vossa influência se descobre universal. Sob este aspecto poderia apreciar, a cada instante, o quanto avancei em Vós. Quando eu visse todas as coisas guardando à minha volta seu sabor num único Elemento, infinitamente próximo e infinitamente distante, - quando, aprisionado na intimidade ciumenta de um santuário divino, eu me sentisse entretanto errar livremente pelo céu de todas as criaturas, então saberia estar próximo do lugar central para onde converge o coração do Mundo na irradiação descendente do Coração de Deus.

Nesse ponto de universal abrasamento, agi sobre mim, Senhor, pelo fogo reunido de todas as ações interiores e exteriores que, provadas menos perto de Vós, seriam neutras, equívocas ou hostis; mas que, animadas por uma Energia "que tudo pode dominar", tornam-se, nas profundezas físicas de vosso Coração, os anjos de vossa vitoriosa operação. Por uma combinação maravilhosa, com vossa atração, exaltai - e depois desgostai - meu coração do encanto das criaturas e da sua insuficiência, de sua doçura e de sua maldade, de sua decepcionante fraqueza e de seu espantoso poder; ensinai-me a verdadeira pureza, aquela que não é separação anemizante das coisas, mas um impulso através de todas as belezas; revelai-me a verdadeira caridade, aquela que não é o medo estéril de fazer o mal, mas a vontade vigorosa de forçar, todos juntos, as portas da vida; dai-me, enfim, dai-me acima de tudo, por uma visão sempre maior de vossa onipresença, a paixão bem-aventurada de descobrir, de fazer e de suportar sempre um pouco mais o MUndo, a fim de penetrar sempre mais em Vós.

Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza, eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!

Ao vosso Corpo, em toda sua extensão, isto é, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, - por todos os recursos que fazem jorrar em mim a vossa atração criadora, por minha ciência fraca demais, por meus laços religiosos, por meu sacerdócio e (no que mais insisto) pelo fundo de minha convicção humana - para nele viver e morrer, - eu me entrego, ó Jesus.

Ordos, 1923.
(Em Hino do Universo, 1923)