domingo, 14 de setembro de 2008

A ASCENSÃO DA LIBERDADE - Pierre Teilhard de Chardin

Voltemo-nos agora para lançar uma olhadela de conjunto para a estrada que acabamos de percorrer.

À nossa volta, de início, nós pensávamos constatar a presença duma Humanidade desagregada e desordenada: a multidão, a massa, - onde não distinguíamos senão talvez a fealdade e a brutalidade.

Procurei, apoiado nas conclusões mais gerais e mais sólidas da ciência, fazer que subísseis acima desta agitação confusa. E, à medida que íamos subindo cada vez mais, eis que a cena, vista de mais alto, se regularizava. Como pétalas dum lótus gigante ao cair da tarde, camadas humanas, de dimensões planetárias, foram-nos aparecendo, fechando-se lentamente sobre si mesmas. E, no coração deste enorme cálice, sob a própria pressão da concentração, descobriu-se um potente foco onde a energia espiritual, gradualmente libertada por um vasto mecanismo totalizador, de seguida concentrado hereditariamente numa espécie de super-cérebro, se transformava pouco a pouco numa visão comum sempre cada vez mais apaixonada. – Neste espectáculo simultaneamente pacificado e intensificado, onde as irregularidades de pormenor, tão desconcertantes à nossa escala individual, se apagam para dar lugar a um largo, tranquilo e irresistível movimento de fundo, - neste espectáculo, dizia, tudo se mantém e tudo se liga com o resto do Universo. Vida e consciência deixam de ser anomalias acidentais na Natureza; mas na Biologia, aparece de repente uma face complementar da Física e da Matéria. Aqui, repito, o Tecido do Mundo que se desagrega irradiando a sua energia elementar; acolá, este mesmo tecido que se reúne irradiando o Pensamento. Algo de fantástico nas duas extremidades. Mas não será necessário um para equilibrar o outro? – Harmonia, pois, em perspectiva. Mas também programa de futuro: pois que, uma vez admitidas estas visões, é um objectivo magnífico, uma linha de marcha precisa, que se apresentam à nossa ação.

Coerência e fecundidade, os dois critérios da verdade. Tudo isto ilusão, - ou realidade?
Tereis que fazer a escolha. Mas aos hesitantes, ou aos que se recusem comprometer-se, direi simplesmente: «Para explicar cientificamente o fenómeno humano, tomado integralmente nos seus desenvolvimentos passados e na marcha do presente, tendes outra coisa ou algo de melhor a propor?»

Tudo isso está muito bem, dir-me-eis. Mas, no sistema que pretendeis tão coerente não faltará precisamente um elemento essencial? No seio do aparelho grandioso que credes ver em marcha, o que é que acontece à pérola do nosso ser, o que sucede com a nossa liberdade?

A liberdade, responderei, mas não vedes então, do ponto em que me coloco, que ela aparece por todos os lados, - e que ela cresce por todos os lados?

Eu sei: por uma espécie de obsessão inata, não conseguimos desembaraçar-nos da ideia de que é ficando o mais isolados possível que nós seremos mais senhores de nós próprios. Ora, não será o contrário que é verdade ? Não o esqueçamos. Em cada um de nós, por estrutura, tudo é elementar, incluindo mesmo a nossa liberdade.

Impossível desde logo continuarmos a libertar-nos sem nos reunirmos e nos associarmos convenientemente. Operação perigosa, certamente, uma vez que, seja misturadas em desordem, seja engrenadas entre si como simples maquinismos, as nossas atividades neutralizam-se ou mesmo mecanizam-se (como experimentamos à saciedade). Mas operação salvífica, também, visto que, unidas centro a centro (ou seja, numa visão ou numa paixão comuns), elas se enriquecem indubitavelmente. Uma equipe, dois amantes... Operada na simpatia, a união não se limita, ela exalta as possibilidades do ser. A uma escala limitada, é o que se experimenta por todos os lados e todos os dias. A uma escala mais vasta, à escada do total, se a lei é inerente à própria estrutura das coisas, por que não haveria ela de valer ainda mais?

Simples questão de intensidade no campo que polariza e atrai. No caso duma união cega ou dum arranjo puramente instrumental, é verdade que o jogo dos grandes números materializa, - mas, no caso duma unanimidade realiza pelo interior, ele personaliza e mesmo, acrescentaria eu agora, infalibiliza as nossas actividades. Uma só liberdade, tomada isoladamente, é fraca, incerta e pode facilmente errar nos seus tateios. Uma totalidade de liberdades, agindo livremente, acaba sempre por encontrar o seu caminho. E eis por que, incidentemente, sem minimizar o jogo ambíguo da nossa escolha em face do Mundo, eu pude sustentar implicitamente, no decurso desta conferência, que nós avançávamos, livre e inelutavelmente, para a Concentração através da Planetização. Na evolução cósmica, poder-seia dizer, o determinismo aparece nas duas pontas, mas, aqui e lá, sob duas formas antitéticas: em baixo, uma queda no mais provável por defeito, - em cima, uma subida para o improvável por triunfo de liberdade.

Estejamos, pois, seguros. O enorme sistema industrial e social que nos envolve não tende a esmagar-nos, não procura desprover-nos da nossa alma. Não só a energia que emana dele é livre no sentido em que ela representa as potências disponíveis; mas livre é ela ainda porque (tanto no todo como no mais humilde dos elementos), se desprende no sentido dum estado sempre mais espiritualizado. Um pensador como Cournot podia ainda imaginar que o grupo socializado se degrada biologicamente relativamente aos indivíduos que engloba. Não é (vemo-lo atualmente melhor) senão mergulhando no coração da Noosfera que nós poderemos esperar, que poderemos estar seguros, de encontrar, todos juntos, tanto quanto cada um de nós, a plenitude da nossa Humanidade.

(Capítulo de conclusão do artigo de Teilhard de Chardin publicado na Revue des Questions scientifiques, em 1947, intitulado "A formação da noosfera").

Trechos de A MISSA SOBRE O MUNDO, de TEILHARD DE CHARDIN

"Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo".

"O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente. Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra desperta, freme, e recomeça seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu Deus, a messe esperada desse novo esforço.
Derramarei no meu cálice a seiva de todos os frutos que hoje serão esmagados".

"Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, em um instante, vão elevar-se de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito. - Que venham pois, a mim, a lembrança e a mística presença daqueles que a luz desperta para uma nova jornada!"

"Outrora, carregava-se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo
impelido pelo devir universal".

"Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação, movida por vossa atração, vos apresenta à nova aurora. Este pão, nosso esforço, não é em si, eu o sei, mais que uma degradação imensa. Este vinho, nossa dor, não é ainda, ai de mim, mais que uma dissolvente poção. Mas, no fundo dessa massa informe, colocastes – disso estou certo, porque o sinto – um irresistível e
santificante desejo que nos faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel: "Senhor, fazei-nos Um!"

"Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime pureza de vossos santos, deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível por tudo quanto se move na matéria obscura, - porque irremediavelmente, reconheço em mim, bem mais que um filho do Céu, um filho da Terra, - subirei, esta manhã, em pensamento, às alturas, carregado das esperanças e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá, por força de um sacerdócio que somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se levanta, eu chamarei o Fogo".

"Aconteceu.
O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.
Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o Mestre as portas para entrar em sua casa? Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro. Desde o coração do menor átomo à energia das leis mais universais, ela tão naturalmente invadiu, individual e conjuntamente, cada elemento, cada mola, cada liame de nosso Cosmos que ele, poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente".

"E agora, pronunciai sobre ele, por minha boca, a dupla e eficaz palavra, sem a qual tudo desmorona, tudo se desata, em nossa sabedoria e em nossa experiência, - mas com a qual tudo se reúne e tudo se consolida, a perder de vista, em nossas especulações e nossa prática do Universo. – Sobre toda a vida que vai germinar, crescer, florescer e amadurecer neste dia, repeti: "Isto é o meu Corpo". – E, sobre toda a morte pronta a corroer, fanar e segar, ordenai (o mistério de fé por excelência!): "Isto é o meu Sangue".

"Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a Matéria para atingir e receber a luz de Deus".

"Se o Fogo desceu ao coração do Mundo é, finalmente, para me tomar e para me absorver. A partir de então, não basta que eu o contemple e que por uma fé viva intensifique sem cessar seu ardor à minha volta. É preciso que, depois de haver cooperado, de todas as minhas forças, com a Consagração que o faz jorrar, eu consinta enfim na comunhão que lhe dará em minha pessoa o alimento que ele veio finalmente procurar".

"Cristo glorioso, influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo; Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes
que o ouro em fusão; Vos cujas mãos aprisionam as estrelas, Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chamava com um desejo mais
vasto do que o universo: Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!"

"Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E, quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me, até a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação de mim mesmo."

"Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza, eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!"

"Ao vosso Corpo em toda sua extensão, isto é, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, eu me entrego para dele viver e dele morrer, ó Jesus"

A CRISTOLOGIA DE TEILHARD DE CHARDIN

Como se sabe, a cristologia é o ramo da teologia que estuda a pesoa de Jesus. Pela cristologia procura-se responder a pergunta: "Quem é Jesus?"

Existem e existiriam ao longo da história da Igreja, muitas diferentes formas de responder a essa pergunta. Existem portanto dentro da Igreja, muitas diferentes cristologias. Mesmo dentro do Novo Testamento, encontra-se varias cristologias, ou seja, diferentes respostas sobre a pessoa de Jesus.

A cristologia de Teilhard de Chardin, situa a humanidade no processo evolutivo do Cosmos, isto é, baseia-se no fato científico da Evolução. Nesta linha, Jesus será enfocado como o "motor" e o "objetivo final" de todo o processo evolutivo. Chardin chama o Cristo de "o Cristo evolutivo", ou de "ponto-ômega". Chamando Cristo de ponto-ômega, Teilhard refere-se ao trecho do livro do Apocalipse em que Jesus diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega".

Teilhard de Chardin, no contexto de uma contradição entre fé e ciência, deseja reconciliar o que ele considera as duas "fés": a fé científica no processo evolutivo do mundo e a fé teológica no Cristo cósmico, de que fala S. Paulo. Entre essas duas fés, Chardin não encontra contradição, mas sim, uma "convergência maravilhosa". Ele escreve:

"O Cristianismo mais tradicional, o do Batismo, da Cruz e da Eucaristia é suscetível de uma tradução onde passa o melhor das aspirações contemporâneas".

Para Teilhard, Cristo seria o ponto-ômega, a meta final da evolução, oobjetivo para o qual tudo converge e se direciona, segundo as palavras deJesus: "Quando eu for elevado, atrairei todas as coisas para mim". Jesus é oponto-ômega da evolução do universo, a causa final que atrai tudo para simesmo.Cristo é também o motor da evolução; é o eixo que conduz e direciona todo processo evolutivo. O Cristo cósmico de Paulo é o Cristo evolutivo. Jesus põe em movimento todo processo de evolução, orientando e dirigindo a marcha evolutiva do universo.

Teilhard escreve:"Eu creio que o Universo é uma Evolução. Eu creio que a Evolução vai para o Espírito. Eu creio que o Espírito, no Homem, se conclui no Pessoal. Eu creio que o Pessoal supremo é o Cristo Universal".

Teilhard fala que o projeto de Deus é cristificar todo universo. O desejo de Deus é transformar tudo em "outro Cristo", ou seja, continuar o mistério da Encarnação do Verbo no mundo inteiro. Referindo-se a essa cristificação do Cosmos, por meio da Eucaristia, Teilhard fala poeticamente e com lindas palavras:

"Quando o sacerdote pronuncia as palavras: 'Isto é o meu corpo', as palavras incidem diretamente sobre o pão e diretamente transformam-no na realidade individual do Cristo. Mas a grande ação sacramental não pára neste acontecimento local e momentâneo... Há uma 'eucaristização' de toda a criação".

"Quando o Cristo, prolongando o movimento da sua encarnação, desce ao pão para substituí-lo, sua ação não se limita à parcela material que sua Presença vem, por um momento, volatizar. Mas a transubstanciação se aureola de uma real, ainda que atenuada, divinização de todo o Universo. Do elemento cósmico em que se inseriu, o Verbo age para subjugar e assimilar a Si todo oresto".

Teilhard encontra comprovação desse processo de cristificação do Cosmos no trecho paulino: "Deus será tudo em todos".

Seria errado imaginar que para Teilhard, o fato da evolução, pode, por simesmo, levar a conclusão ou dar por assentado que o mistério da encarnação seja necessário. Somente pela revelação se conhece o fato da encarnação e só por ela pode ser conhecido, como também só pela fé cristã se pode-se descobrir nos mistérios de Cristo a "convergência maravilhosa" entre o processo evolutivo do mundo e a "cristificação" do cosmos. No entanto, a fé cristã e o conhecimento científico do fenômeno evolutivo, como que "exige" um ponto final, um ápice, uma meta, um objetivo, para o qual tudo se direciona e converge. Teilhard fala, assim, que Cristo seria como que o ápice de uma abóboda, no qual se encerra e completa todo o processo da evolução. O processo evolutivo, para ser coerente e racional, "exige" o ponto-ômega.

No pensamento de Chardin, não pode o Cristo-ômega, com sua natureza cósmica, ser reduzido a um princípio abstrato. Jesus, o ponto-ômega, é o mesmo Jesus de Nazaré, que nasceu em Belém, viveu no meio de nós, morreu e ressuscitou. Teilhard insiste em afirmar que só quando inserido pessoalmente no "phylum"humano é que Cristo pode agir como causa final, que atrai para si próprio o cosmos em processo de evolução. O ponto-ômega verdadeiramente assumiu a humanidade e a recapitulou. Ele escreve:

"Se se suprimisse a historicidade de Cristo, isto é, a divindade do Cristo histórico, chegar-se-ia, imediatamente, à anulação de toda a experiência mística dos 2.000 anos do cristianismo. O Cristo filho da Virgem e o Cristo ressuscitado são indissociáveis".

A cristologia de Teilhard é "ascendente" ou "de baixo para cima", no sentido de que situa sua análise teológica na natureza humana, na ordem da criação, e daí eleva-se até a divindade de Cristo.

Uma crítica que se faz à cristologia de Chardin, é que ela tem pouca base bíblica e tende a perder o contato com a vida concreta e histórica de Jesus, em seus aspectos histórico-culturais.